Liberdade garantida
Os rolezinhos, prática adotada recentemente por jovens das periferias de grandes cidades, são representativos de um apartheid social em pequena medida. O apartheid foi um movimento legislativo instituído na África do Sul, com a finalidade de segregar socioeconomicamente diferentes grupos raciais. A primeira grande legislação efetuada pelo Congresso sul-africano, composto inteiramente por brancos opressores dos negros, foi sancionada em 1950. A jornalista brasileira Eliane Brum, em seu artigo no jornal El País intitulado “Rolezinhos: o que estes jovens estão ‘roubando’ da classe média,” publicado no dia 25 de dezembro de 2013, utilizou o termo “apartheid” livremente, para referir-se aos rolezinhos, que têm, de acordo com a jornalista, um caráter social organizado, pois os jovens das periferias querem “curtir e paquerar”. A ideia de segregação social e violação dos direitos de uso do espaço público, sugerido pela escritora, vem com base nas atitudes de shoppings da capital Paulista que proibiram a entrada de rolezeiros, os quais seriam discriminados por meio de sua etnia e vestimenta.
Funk ostentação, um hino dos rolezinhos, revela a segregação social por meio da apologia ao consumismo, que é supostamente restrito às classes mais altas, porém essa divisão não pode ser considerada um apartheid. Os locais selecionados pelos jovens para promoverem esses eventos, que pararam o Brasil durante as férias escolares, são os shopping centers, os centros do consumo, os símbolos da prática amparada pelo próprio funk ostentação. A divisão de um espaço supostamente voltado para o público geral, como um shopping center, desrespeita vários direitos básicos dos brasileiros, assegurados pela constituição. Entretanto, não é possível afirmar que exista uma relação definida entre os rolezinhos brasileiros e o movimento racista sul-africano. Eliane Brum exagerou em sua comparação. O novo poder de consumo da classe C, ao qual o funk ostentação faz referência, é um fenômeno socioeconômico complexo, que marca classe a ascensão de moradores de periferia e sua aceitação em espaços que antes eram ocupados apenas pela já estabelecida classe média. Portanto, prefiro crer que a razão pela qual os shoppings barraram jovens com menos de dezoito anos desacompanhados – o que não caracteriza distinção de classe e cor, e sim de facha etária – foi por conta da falta de estrutura oferecida por esses estabelecimentos para comportar seis mil e tantas pessoas dançando e cantando em seus corredores. O temor era apenas quanto à segurança, pois essa quantidade de pessoas poderia resultar em caos.
A questão de segregação social existe, sim, quando se trata de rolezinhos, mas estabelecer uma comparação entre esse episódio e o apartheid sul-africano é certamente atitude exagerada e sensacionalista. A divisão econômica no Brasil, diferentemente do que havia no século passado, é horizontal e não vertical. As pessoas se distinguem predominantemente pelo seu poder de compra e não por sua cor ou etnia. A classe alta frequenta bares, restaurantes e espaços de lazer exclusivos, enquanto a camada mais pobre se restringe a outros estabelecimentos mais baratos. Com a criação de parques e espaços públicos de lazer nas periferias, a classe C poderá encontrar lugares de mais fácil acesso e talvez a divisão econômica não seja tão marcada.
Há nesse movimento uma ferramenta que luta ferrenhamente contra a máquina que gera a hierarquia e determina o poder de compra: a internet. É importantíssimo ressaltar o papel do livre acesso à internet. Qualquer pessoa de qualquer classe em qualquer parte do Brasil poderia participar do rolezinho, que foi divulgado e organizado por meio da web, representando a quebra de uma barreira sempre presente na história brasileira. Antigamente, como no apartheid, era impossível se relacionar com pessoas de diferentes classes por conta de barreiras geográficas. Pobres moravam longe do centro e ricos moravam no centro. Hoje em dia, essa divisão se mantém, mas por meio da internet a necessidade do parecer físico se tornou limitada. Por tanto, graças à internet, as pessoas estão todas conectadas umas as outras por meio dessa enorme rede que abrange o mundo todo. A conectividade era inexistente durante o apartheid.
No Brasil de hoje, é necessário reconhecer uma divisão social que foi trazida à tona pelos rolezinhos e que sempre assolou nossa história. Os jovens que participaram do movimento são majoritariamente da mesma classe social. O espaço dos shoppings, que deveria ser público, foi dividido para evitar confusões. E os funks demonstram uma revolta contra o reduzido poder de compra das camadas mais pobres. Porém, a comparação com o apartheid, como disse anteriormente, é injusta. Embora fundamentada em exemplos pontuais, que incomodam, entristecem e abrem espaço para questionamentos – como a morte de um jovem homossexual, ignorada por policias e a proibição de rolezinhos em shoppings de alta classe – a tese de Eliane Brum acerca dos rolezinhos não se sustenta. O movimento não tem caráter sociopolítico como os que ocorreram em junho do ano passado, por exemplo. Os rolezinhos foram manifestações culturais que ressaltaram a presença e a importância das classes mais baixas num mundo dominado pelo capitalismo e a necessidade de se estabelecer, por meio do poder de compra, o lugar que a classe C ocupará daqui pra frente. Atitudes tomadas pelos proprietários de shoppings não tinham caráter social, e sim econômico. O Brasil e o mundo são movidos por dinheiro e somos impotentes perante a imensidão do sistema. Talvez por isso, movimentos como os rolezinhos incomodem tanto. Não se trata de um apelo banal, mas sim de uma massa que exige mudanças.
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