O melhor – se não um dos melhores – filme brasileiro da história conta a história da Cidade de Deus ou do inferno?

 "A rapaziada do governo não brincava. Não tem onde morar? Manda para a Cidade de Deus. Lá não tinha luz, não tinha asfalto, não tinha ônibus. Mas para o governo dos ricos não importava(...). A Cidade de Deus fica muito longe do cartão postal do Rio de Janeiro" - Buscapé

 “A rapaziada do governo não brincava. Não tem onde morar? Manda para a Cidade de Deus. Lá não tinha luz, não tinha asfalto, não tinha ônibus. Mas para o governo dos ricos não importava(…). A Cidade de Deus fica muito longe do cartão postal do Rio de Janeiro” – Buscapé

Cidade de Deus, obra cinematográfica brasileira indicada ao Oscar por melhor direção, roteiro adaptado, fotografia e montagem, é fruto da genialidade de Fernando Meirelles e Kátia Lund e se passa no complexo habitacional de mesmo nome, construído na periferia da cidade do Rio de Janeiro.O filme é uma adaptação do romance de Paulo Lins, publicado em 1997, que retrata o surgimento e a evolução do crime organizado nas favelas. Apesar do seu grande número de personagens e do longo enredo, ele possui uma narração naturale uma ordem lógica que torna fácil a sua compreensão e acompanhamento.

A primeira parte do longa tem a intenção de mostrar as conturbadas origens da comunidade e de fazer ver ao público, como um lugar que nasce da violência está destinado a sempre viver dessa maneira.Vibrante, divertido e polêmico, Cidade de Deus é uma obra prima do cinema nacional, que virou orgulho dos brasileiros ao, ironicamente, explorar um dos maiores motivos de fracasso do país: a violência.

O escritor brasileiro Paulo Lins, que ganhou fama internacional com a publicação do livro Cidade de Deus é também Buscapé, o narrador do filme que enfrenta um grande dilema moral ao crescer na favela: trilhar o caminho longo e difícil de uma vida honesta ou o sedutor e curto caminho do crime?

O longa se inicia com a narrativa de Buscapé sobre a história do “Trio Ternura” -Cabeleira, Alicate e Marreco – que aterroriza os negócios locais e divide parte dos frutos dos crimes praticados, com os habitantes da favela. Em uma tentativa do trio de assaltar um motel, entretanto, tudo foge ao controle quando o jovem Dadinho mata todas as pessoas do local e a culpa da chacina recai sobre os três amigos, que se veem obrigados a se separar. Cabeleira abandona a vida criminosa, Alicate acaba sendo morto a tiros em uma tentativa de fuga e Marreco é assassinado por Dadinho, que adquire poder em seu meio e se torna o violento, insano e impiedoso Zé Pequeno.

O tempo avança e a fita mostra que, ao eliminarem os seus inimigos, Zé Pequeno e seu amigo de infância Bené estabelecem um império por meio do tráfico de drogas na comunidade.Antes disso, porém, Zé Pequeno e Buscapé são apresentados ao público na cena – uma das mais famosas – de abertura do filme: a perseguição de uma galinha.

Nessa icônica cena, que virou capa do longa, Buscapé se encontra preso em meio a um tiroteio entre a PM e traficantes, quando vê sua vida passar diante de seus olhos. Ele relembra, então, de todos os acontecimentos da Cidade de Deus que o levaram ao momento mais crítico e decisivo de sua existência – se correr o bicho pega, se ficar o bicho come – e que é também o clímax do filme.

Tal cena apresenta aos espectadores, por meio do ritmo frenético e caótico que se impõe nos cantos apertados e dessarumados da favela, todo o crucial e constante realismo do filme, Assim, além do enredo, o movimento de câmera – quesito também indicado ao Oscar – e toda a produção do filme são marcantes ao demontrar como a vida na comunidade de fato acontece.

Apesar de Buscapé narrar a história da favela, é perceptível que não existe um verdadeiro protagonista ou herói nela. Todas as personagens do filme são, de alguma forma, responsáveis por perpetuar um ciclo de violência e de ódio. Nem mesmo Buscapé se isenta dessa responsabilidade, quando se utiliza de fotos dos criminosos com o intuito de ganhar reconhecimento na editora em que trabalha e ser promovido para fotógrafo.

Outro aspecto notável da obra é a sua rápida e dinâmica edição que, juntamente às cores sépias do filme, não apenas inserem aqueles que o assistem no cotidiano das personagens mas também evidenciam que, por mais rápido que o tempo passe, os problemas daquela sociedade se perpetuam. As personagens, por mais essenciais que sejam para falar sobre a realidade, são apenas peões em um jogo maior de um ciclo de ódio e vingança. Os peões, na verdade, servem para contar a história do verdadeiro protagonista do filme: a própria Cidade de Deus.

Assistir a história do desenvolvimento da Cidade de Deus durante as décadas de 60, 70 e 80 é ver, acima de tudo, a realidade de grande parte da população brasileira. Além de um filme genial, bem dirigido, incrivelmente bem filmado e com quatro indicações ao Oscar, ele é um choque de realidade necessário, que merece ser aplaudido por todos.